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Por Arthur Soffiati
Tenho acompanhado pelos jornais os problemas que pescadores estão enfrentando para sair pelos rios e chegar ao mar ou para entrar neles. Acompanho também a luta de São João da Barra para salvar Atafona.
Estou escrevendo um artigo longo e bem fundamentado sobre o assunto pelo ângulo da eco-história. As notícias mais antigas sobre essa dificuldade datam do século XVIII.
Podemos remontar até a um período mais antigo, lembrando a dificuldade que os Sete Capitães encontraram para alcançar o cabo de São Tomé por mar saindo de Macaé, que já existia como povoado, para tomar posse das terras que requereram à Coroa Portuguesa, a título de sesmarias. No norte, os domínios concedidos aos fidalgos começavam na foz do rio Iguaçu, hoje reduzido à lagoa do Açu. No sul, estendiam-se até o rio Macaé.
As terras requeridas pelos fidalgos correspondiam a um trecho da abandonada Capitania de São Tomé por Pero de Gois e seu filho Gil de Gois. Por acordo entre os donatários das Capitanias do Espírito Santo e de São Tomé, o limite entre elas foi estabelecido no rio Itapemirim. No sul, estima-se que acercava-se do rio Macaé. Sem muita percepção das caraterísticas dos terrenos costeiros – ou com bastante percepção delas –, Pero de Gois escolheu uma parte alta da zona costeira para se instalar. Esta zona é uma espécie de aterro formado por rios e mar constituído de tabuleiros, aluviões e areia. Este aterro afastou a zona serrana do mar e se formou com a contribuição sedimentar de ambos. Batizei-o com o nome de Ecorregião de São Tomé, em homenagem ao cabo de São Tomé, que se situa a quase meio caminho das duas pontas do arco, representadas pelos rios Itapemirim e Macaé.
Esta costa é nova em termos geológicos, baixa, desprovida naturalmente de pedras, varrida por correntes, ondas e marés bravias e por fortes ventos. Seu perigo foi registrado pela primeira vez pelo escrivão dos Sete Capitães, em 1632. Saindo de Macaé numa sumaca, antigo tipo de embarcação não mais usado, a expedição tentou aportar no cabo de São Tomé e não conseguiu devido ao mar hostil. Um homem caiu na água. A expedição voltou a Macaé e retornou por terra, numa fatigante caminhada. O homem que caiu ao mar conseguiu milagrosamente se salvar a nado.
Mas os primeiros relatos confiáveis sobre as saídas de água doce para o mar, na Ecorregião de São Tomé, estão no primoroso relatório do capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis, datado de 1785. Ele exclui o rio Itapemirim porque o mesmo retornara à capitania do Espírito Santo, no século XVIII. No mapa que acompanha o relatório -ou o contrário- figura o rio Itabapoana com a foz inclinada para o sul, a indicar a corrente marítima preponderante. A bacia do Itabapoana ainda não contava com represas, e as margens dos rios formadores dela eram cobertas de florestas. Havia muita água doce chegando ao mar pela foz do Itabapoana, mas a energia oceânica era e é mais forte. Barcos de médio calado conseguiam entrar nele com maré alta e ventos favoráveis. Com maré baixa e ventos fortes, a operação era arriscada. Couto Reis escreve sobre a foz: “...barra pouco segura pelos baixios. Ela, a barra, é inconstante e à proporção das mudanças do tempo e das enxurradas de águas do norte se altera, ora encostando-se para o sul, ora mais para o norte, de cuja variedade nasce não permitir navegação continuada, posto tendo suficiente largura (...) aquela referida barra fora antigamente mais ao sul, no sítio chamado Santa Catarina das Mós.”
Foz do rio Itabapoana voltada para o sul
Mais ao norte, a foz do rio Itapemirim já era também perigosa. Quem nos fornece a informação é Milliet de Saint-Adolphe, um francês que viveu no Brasil e colheu dados para escrever um precioso dicionário geográfico e histórico sobre o país, publicado entre nós em 1863. Escreve ele que o Itapemirim é “Rio da província do Espírito Santo: vem da serra do Pico, ramo da cordilheira dos Aimorés, corre do ocidente para o oriente obra de 8 léguas, dando navegação a canoas, rega a vila de seu nome, e perto de sua embocadura faz várias voltas antes de se ir lançar no Oceano. Sobem por este rio as sumacas até a vila, e depois de carregarem descem com a enchente da maré, por não haver nesta embocadura nunca de 6 para 7 pés de fundo.” É uma profundidade insignificante e que ficou ainda menor com a construção de um guia-corrente no século XX, entre a margem direita da foz e uma ilha de pedra próxima da desembocadura.
Foz do rio Itapemirim
Este guia-corrente, estrutura popularmente conhecida por espigão, retém areia proveniente do norte e a transporta para a foz, assoreando-a e tornando-a mais rasa e perigosa. Os pescadores reclamam. Além do mais, essa areia dirigia-se para o sul e se depositava na praia central de Marataízes. Como esse transporte foi permanentemente interrompido, o mar começou a erodir a praia central. Para corrigir os danos provocados pela ação humana, uma gigantesca e cara praia artificial foi construída para frear a erosão da costa. Ainda é cedo para verificar se essa é mesmo a melhor solução.
Entre os rios Itapemirim e Itabapoana, existem vários pequenos córregos que incidem de forma oblíqua sobre a linha de costa. Originalmente, deviam ser cursos que abriam suas barras na estação das chuvas, enquanto, na estação da estiagem, o mar as fechava. Sua orientação de norte a sul pode ser um indicador da direção da corrente marinha dominante. Mesmo com todas as intervenções humanas destruidoras, alguns desses córregos ainda conseguem chegar ao mar, inclusive na estação seca.
Barra da lagoa do Siri, sul do Espírito Santo
Há córregos semelhantes entre os rios Itabapoana e Guaxindiba, no território municipal de São Francisco de Itabapoana. A orientação é a mesma, revelando, possivelmente, que a corrente marinha predominante se desloca de norte a sul. Porém, eles foram mais destruídos que seus irmãos capixabas por várias intervenções humanas, principalmente as operações de lavra das Indústrias Nucleares do Brasil (INB).
Entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, o curso fluvial mais expressivo é o rio Guaxindiba. Sua barra também é problemática de longa data, embora não tenhamos muita informação sobre a bacia. Em 1940, o engenheiro Camilo de Menezes, do Departamento Nacional de Obras e Saneamento, escrevia em ilustrativo relatório: “O Rio Guaxindiba é o único afluente do oceano entre a foz do Paraíba e a ponta de Manguinhos. Sua barra, ao contrário das situadas ao sul de Atafona, é muito estável e só se fecha quando cessa totalmente a descarga do rio; logo às primeiras chuvas pode-se abri-la facilmente.” O desmatamento, as muitas barragens e outras alterações ambientais tornaram a barra muito rasa e perigosa no período das secas.
Foz do rio Guaxindiba
De todos da ecorregião, o rio Paraíba do Sul é o mais conhecido. Graças às suas dimensões, ele faz jus à condição de mais importante. Os problemas na sua foz, contudo, não são menores. Couto Reis, em 1785, dizia dele: “... chega aos Campos Goytacazes, a fenecer no mar em duas barras, uma ao norte chamada de Gargaú, que por baixa não admite entrada mais que a canoas, e outra ao sul, com mais de 100 braças de largura e fundo diminuto, unicamente para sumacas que sustentam três mil arrobas de peso (...) A entrada e saída por esta barra é enfadonha e perigosa e depende de ventos diferentes, de tal sorte que muitas vezes sucede esperarem as embarcações bastantes dias fora por vento favorável.”
Os pósteros o confirmarão. O naturalista amador Antonio Moniz de Souza, vindo do Nordeste, chegou a Campos, onde viveu em 1827 e 1828, subindo o rio Paraíba do Sul pela foz. Nas suas impressões, ele escreve: A “... barra (...) tem de profundidade em preamar de marés vivas de dez a onze palmos; é de areia e, por consequência, mudável, o que a torna não só contingente, como perigosa à entrada de embarcações, pois só entram com vento de maré cheia, apesar de ser balizada diariamente e pelo patrão-mor.” Milliet de Saint-Adolphe corrobora: “Sua embocadura se acha por vezes obstruída com bancos de areia que se desfazem com a violência dos ventos e força das marés, ficando assim mais fácil a saída e entrada de barcos. Quando porventura faltam os ventos, veem-se os habitantes obrigados a picarem-nos para facilitar a saída das embarcações ligeiras que exportam os produtos de Campos e de São João da Barra.”
Daí em diante, haverá uma repetição quase enfadonha sobre as condições adversas da foz do grande rio para a entrada de saída de barcos. Tanto assim que, em 1875, o engenheiro inglês John Hawkshaw, buscando um porto seguro no futuro norte fluminense, examinou a enseada de Manguinhos e a foz do Paraíba do Sul, optando pela segunda. Era preciso, contudo, uma grande obra para fixar a barra e torná-la permanente franca à navegação. Sua proposta foi a construção de dois guias-correntes, um em cada margem do rio, prolongando-o mar adentro, conforme mostra o desenho:
Na época da proposta de Hawkshaw, não havia preocupação com estudos das condições ambientais. Vivia-se – e ainda vive-se disfarçadamente – uma época em que se acreditava que o engenho humano era capaz de vencer a mais adversa natureza. Vejamos o caso de Atafona atualmente. Considerando-se os estudos de Martin, Suguio, Dominguez e Flexor sobre a formação da planície fluviomarinha do Paraíba do Sul, conclui-se que a grande restinga do trecho final do rio foi constituída por ele próprio, funcionando como espigão hídrico. Seu jato, até início do século XX, era mais potente que hoje. Ele retinha areia tanto ao lado de uma margem quanto ao lado de outra. Um espigão rígido, construído com pedras, como pretendia Hawkshaw, prolongaria a restinga ainda mais na sua largura até que, alcançando a ponta do espigão rígido, invadiria a foz, como acontece hoje sem esses espigões.
O engenheiro campista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, na década de 1920, em estudo sobre drenagem do estirão final do Paraíba do Sul encomendado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, propôs a construção de um canal de cem metros de largura, dividido em dez canais menores, na margem direita, ao sul da lagoa Feia, e um rio paralelo ao Paraíba do Sul, de Campos ao mar. Ambos, teriam a função de auxiliar o escoamento de água em tempos de cheia para o mar. Pelo menos, a ideia de um escoadouro pela margem direita foi levada adiante pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Ele veio a se transformar no canal da Flecha.
Atualmente, trava-se uma acalorada discussão sobre a construção de uma praia artificial para resolver o problema da erosão costeira em Atafona, foz do Paraíba do Sul. Uma obra de tal envergadura é cara e não garante a estabilização da praia. A perda de continente tem sido grande, com a destruição de muitas casas residenciais, comerciais e de veraneio, como se pode concluir da figura seguinte:
Duas imagens aéreas mostrando a perda sofridas no pontal de Atafona
O delta do Paraíba do Sul não se restringia ao canal central e ao de Gargaú, como atualmente. Nas cheias, o grande rio ativava também outros dois braços, hoje mortos: Gruçaí e Iquipari. Sendo isolados do grande rio, eles se transformaram em lagoas alongadas. No passado, eles ainda abriam suas barras pelo acúmulo de água doce. Assim que as águas continentais perdiam força, o mar fechava suas barras novamente com areia. Hoje, as aberturas são feitas com a ajuda de ferramentas.
Barra da lagoa de Grussaí aberta mecanicamente em 1992
Ao sul do Paraíba do Sul, corria, outrora, o rio Iguaçu, hoje completamente desfigurado pelas obras efetuadas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Quando ele fluía normalmente, o problema de navegação também existia. Sobre esse rio e sua foz, Milliet de Saint-Adolphe registrou: “Iguaçu ou Castanheta. Canal natural que serve de sangradouro a várias lagoas do distrito da cidade de Campos, na província do Rio de Janeiro, entre o rio Paraíba e o cabo de São Tomé, e se ajunta com outro canal que deságua no oceano, e que se chama Furado. Darão provas de patriotismo os membros da câmara, e mais autoridades, tirando proveito das lagoas, canais e rios do distrito de Campos, Cabo Frio, Maricá e Niterói, para estabelecer um sistema completo de navegação no interior das terras, de perto de 60 léguas entre o rio Paraíba e a baía de Niterói.” A informação não é confiável.
O grande problema de comunicação entre a água doce e o mar, todavia, localiza-se em Barra do Furado. Naturalmente, ela não existia. As águas da lagoa Feia escoavam por vários canais naturais que se uniam na lagoa do Lagamar. Ali, a força das águas continentais a abriam. Os antigos chamavam essa abertura de barra Velha. Do Lagamar, partia um curso d’água alimentado por vários defluentes do Paraíba do Sul. Era o rio Iguaçu, que tinha foz no mar.
Em 1688, José de Barcelos Machado, proprietário do morgado de Capivari, rasgou uma vala para abreviar a saída de água continental para o mar. Ela recebeu o nome de vala do Furado, tendo sua foz o nome de barra do Furado. Sempre foi uma saída problemática para o mar, pois situa-se num ponto muito assolado pela energia oceânica. Mesmo assim, a engenharia insistiu nela.
Mapa mostrando as antigas barras do Furado e Velha
Em 1897, o engenheiro Marcelino Ramos da Silva, concluiu o canal de Jagoroaba, em linha reta entre o ponto mais meridional da lagoa Feia e o mar. O resultado foi um completo fracasso. Saturnino de Brito voltou a insistir nos defluentes que escoam as águas da lagoa pela vala do Furado. Finalmente, no final dos anos de 1940, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento rasgou o grande canal da Flecha entre a lagoa e o mar, aproveitando a vala do Furado, que foi alargada. O problema de fechamento da barra pelo mar continuou. Então, no início dos anos de 1980, o órgão prolongou o canal mar adentro por meio de dois guias-correntes de pedra. O custo da obra foi muito alto e não resolveu o problema. A linha da costa do lado de Quissamã avançou com a deposição de areia, enquanto que, do lado de Campos, foi erodida. Essa quebra da linha costeira indica a direção da corrente marinha dominante. A foz do canal fica sempre assoreada, exigindo dragagem de tempos em tempos.
Canal da Flecha. A foto permite ver toda sua extensão, da lagoa Feia ao mar
Por fim, o rio Macaé, que parece mais propício à entrada e saída de embarcações de médio calado. Couto Reis registrou que ele tem: “... barra de 25 braças de largo e fundo de 10 palmos que dá fácil entrada a embarcações de pequeno porte. A barra deste rio, por ser pouco segura, lhe deparou a natureza dois abrigos para mais facilmente navegar-se, um o da Concha, e outro o das Ilhas de Santa Ana. A Concha é uma enseada ao sul, na qual ancoram as embarcações à espera de vento ou maré favorável para a sua entrada: e por que muitas vezes com toda a carga também não podem descer e vencer o baixo, se põem menos pesadas com suficiente lastro, e saindo assim das dificuldades, esperam na Concha o resto das cargas, que se conduzem em canoas até viajarem”
Milliet de Saint-Adolphe endossa: o rio “... torna-se navegável depois que se engrossa com as águas do rio São Pedro: antes de se ajuntarem apenas ambos estes rios dão navegação a canoas, mas, passado este ponto, admite o Macaé grandes barcos que por ele navegam distância de 7 léguas até se lançar no mar defronte das ilhas de Sant’Ana.”
Mapa antigo mostrando a foz do Macaé e a enseada da Concha
Referências
BRITO FILHO. Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do rio Paraíba e da lagoa Feia e o projeto de Saturnino de Brito. Revista Brasileira de Engenharia. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, julho de 1931.
BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. Defesa contra Inundações: melhoramentos do rio Paraíba e da lagoa Feia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.
BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. Projetos e relatórios: saneamento de Campos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943.
COUTO REIS, Manoel Martins do. Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacás que por ordem do Ilmo e Exmo Senhor Luiz de Vasconcellos e Souza do Conselho de S. Majestade, Vice-Rei e Capitão General de Mar e Terra do Estado do Brasil, etc se escreveu para servir de explicação ao mapa topográfico do mesmo terreno, que debaixo de dita ordem se levantou. Rio de Janeiro: manuscrito original, 1785.
HAWKSHAW, John. Melhoramento dos portos do Brasil. Rio de Janeiro: Leuzinger e Filhos, 1875.
MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M. L.; e FLEXOR, Jean-Marie. Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997.
MENEZES, Camilo de. Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases. Campos: Ministério da Viação e Obras Públicas/Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense/Residência da Baixada dos Goitacases, abril de 1940 (datil).
SAINT-ADOLPHE, J.C.R. Milliet de. Dicionário geográfico histórico e descritivo do Império do Brasil. Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863.
SOUZA, Antonio Moniz de. Viagens e observações de um brasileiro, 3ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2000.
Fotos: Por Arthur Soffiati
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